20.7.15

RÚSSIA CONGELADA

Ao Carlos Drummond

minha terra despertou
       hoje como a rússia congelada.
não há vodka que possa queimar a garganta,
não há borsch que possa preencher o vazio
do estômago e da alma em zero absoluto.

minha terra despertou de luto branco
      pela inconsolável perda de si mesma.

sou a menor matrioshka concebida
       pelo homem, fuzilada por soldados
  munidos de kalashnikovs em punho
         e munição reserva enrolada no peito.

em cada buraco de bala revela-se
meu interior oco, inda que a tradição
afirme que a última matrioshka deva ser maciça
por ser a mais frágil e abarcada pelas demais.

sou o abandono e o desconsolo,
ogiva nuclear que implode e, entre tuas ruínas,
arruína talvez a única possibilidade de esperança,
inda que os pássaros cantem na janela
e biquem o vidro como chamado para a vida.
     mas na rússia congelada não há substantivos
que propagam calor, apenas o frio desesperador
                       que estatiza os ponteiros do relógio.

hoje eu seria um bom amigo, carlos.
você que não se importava de ter amigo calado
e distante, mas que de alguma forma
           possuía algo a oferecer secretamente.

sou tão calado que estou morto,
       como estão àqueles cujas palavras deleito
em meu quase leito de morte impregnado
    pelas impurezas da chuva que falsamente
           pode transmitir a impressão de ser limpa.

hoje chove como se não houvesse hoje.
o calendário consumido não computa o dia
        em que o mundo sumiu
               mergulhado em angústias.

quando o frio bate à porta, não se pode
fingir que não há ninguém em casa para recebê-lo.
as dobradiças não são mais fortes do que teu poder
de aniquilação, então o deixo entrar
e faço companhia para tua indesejável visita.
mas logo entendo que não sou o anfitrião,
pois a rússia congelada é dominante em todos
os atos de sua mão mais pesada do que o inverno,
        mais pesada do que o próprio inferno.

o inferno congelou-se
          e hoje se mudou para dentro de mim.
cada palavra que escrevo é um batimento
a mais de coração para bombear o calor necessário
à prolongação da existência
                 por mais alguns minutos.

busco tuas pegadas, carlos,
por saber que trilharam caminhos seguros.
agarro-me ao que me é familiar pela medrosidade
         de arriscar embarcando em um trem-bala.

resisto no trem de ferro, na velha locomotiva.
resisto em minas gerais com teus horizontes já não
tão belos e hoje fechados como
         as tantas fronteiras da rússia congelada.

sou o dia nove de maio,
possivelmente apenas mais um dia
para a maioria das pessoas em todo o mundo,
mas que guarda resíduos de uma tristeza profunda
            compreendida pelos nossos pares.

no chão de pé-de-moleque
caminho descalço e sangro em vermelho.
tento em vão enrolar meus pés em panos brancos,
mas não há branco que possa subjugar o vermelho
e, se insisto, o sangue jorra dos olhos e da boca.

insisto sempre e insisto mais.
por isso vermelha é a cor de minhas palavras
que jorram dos meus dedos...
       ...e então novamente vem mais um dia frio
                       derrubando portas, janelas e paredes,
lançando no ar a locomotiva e tudo o que motiva
      mais um despertar... mas desperto.

e a rússia congelada hiberna
           aguardando outro amanhã.