Ao Vincent Van Gogh
caro vincent,
permito-me chamá-lo
intimamente pelo
primeiro nome
pela compatibilidade da alcunha
de personificação
do fracasso
que lhe foi atribuída.
meus instrumentos
não são pincel e paleta,
mas papel e
caneta.
em rima e em arte nosso
encontro torna-se
plausível,
embora em tempo e espaço
físicos hão de
questionar.
quando inicialmente
- camponeses comendo batatas -
passou a expor a
verdade por trás
dos retoques e
embelezamentos
da realidade, teu grito
atravessou
o atlântico e semeou as terras
mineiras onde o
poeta vingaria.
o casarão em arcos onde,
primeira de cinco, nasceria sob
sol em câncer
e lua em libra
a professorinha que cedo aprenderia a fumar.
- para espantar os mosquitos, diziam -
a realidade chocante
da nicotina
em óleo sobre tela
- caveira com cigarro aceso -
espantou do corpo a alma
de minha avó
materna.
de piumhi, o menino sem estudo
nascido sob sol em escorpião
e lua em áries nunca
desistiu do sonho
de encontrar diamantes nas águas
do velho
chico para se casar com
a predestinada menina
de arcos.
mas a realidade plausível
sob a qual você já havia
se debruçado quando residiu em paris
- natureza morta com absinto -
levou meu avô materno
a abandonar
as águas e casar-se com nairzinha
na capital
das minas gerais.
todas as confluências mineiras
de arcos, piumhi, itabira, diamantina
e das ruas e vielas de belo horizonte
formaram o retrato do poeta.
desconfio,
vincent,
que o halo que se forma em torno de ti
- autorretrato com chapéu de palha -
foi o primeiro
fragmento
de
minha essência.
sentei para apreciar
a vista das
planícies de crau,
atravessei a ponte em langlois com lavadeiras,
zarpei nos barcos de pesca de saintes-maries,
dancei no salão de
baile em arles.
morei na casa amarela,
visitei o velho
moinho,
tomei café quente e preto
no terraço do
fórum
e na place lamartine,
apreciando estrelas.
escrevo essas palavras agora
sentado em uma escrivaninha na rua sergipe.
a vista não é roxa e nem amarela como em arles,
mas os teus
girassóis amarelos resistem,
inda que mais
próximos dos relógios de dalí.
de tua orelha cortada,
oferecida à
prostituta,
nasceu a poesia
que a família drummond respira
desde que carlos escreveu
o verso
inaugural.
mas a tristeza,
vincent,
não se
esvai pela mutilação,
não se dissipa no deslizar do pincel,
não se esconde no
traçar da caneta,
não se desvanece ao
anoitecer.
debaixo da
amendoeira em flor,
a tristeza durará para sempre.